A minha avó de 104 anos não quer saber de nenhuma pandemia

Especial: Diario de la pandemia / dossier / Junio de 2020

Ondjaki

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era impossível não pensar, estupefacto, como é que ainda é possível que a AvóAgnette esteja aqui connosco, numa batalha mais, ela que veio do início do século vinte, durante uma primeira guerra, atravessando a segunda mundial, todas as guerras angolanas, até à paz, enterrando tudo e todos durante todos os anos que podemos imaginar até à presente data; aqui estava ela connosco, em casa, nesta casa, (e nós com ela), e tantas vezes, durante estes dias, me sento portanto à beira dela a tentar ler-lhe o olhar e as mãos, a ausência e a musicalidade, o que dizem os olhos e o pouco dos gestos que apresenta; era impossível não ficar receoso, sobretudo pelos pais e pelas crianças, por razões diferentes, e era impossível não rir com os pais e com as crianças, reinventar (isso vem de todas as guerras, em todos os lados das famílias, em todos os séculos…) os hábitos, as rotinas, as designações das funções e dos tempos nossos em cada um e nos outros; sorrir, rir, desmanchar a rir, chorar talvez, e guardar o espanto para olhar todas as manhãs, todas as noites, a AvóAgnette ainda aqui deitado perto dos nossos dias, das nossas refeições, das nossas conversas e cuidados e carinhos e lembranças; o horário solto requer alguns rigores para fingir que os dias ainda são iguais aos que havia; as refeições pautam os minutos, as funções sobram, as direcções do norte e sul da casa tiveram que ser reajustadas; as crianças, uma de nove e outra de doze, terão de crescer, como todos nós; sempre foi assim, dir-se-ia (quem diria… a Avó? a tia Rosa? a tia Tó? o tio Victor?), mesmo em outras guerras, curtas ou mais extensas, mais ou menos visíveis; era impossível não deixar que as internets e os instagrams e os ritmos todos se instalassem e esses palcos se confundissem com a narrativa dos quotidianos, ao ponto de todos (com a excepção da AvóAgnette) refazerem os álbuns das suas piadas e memes, gravações audio ou vídeo, conversas e reuniões familiares, até já tivemos um canta-parabéns desses de zoom que, no futuro, teremos (terão, os dois miúdos…) de explicar a quem já frequentar ‘zooms’ holográficos; sorrir, rir, espantar-me com exultação pela criatividade que vejo brotar de amigos e desconhecidos, novos apresentadores de tv, uns a brincar e com muita habilidade, outros a sério e com pouca habilidade, mas há que reconhecer nisto tudo a ginástica de permitirmo-nos ginasticar para não sucumbir; inventar, recriar, difamar, problematizar e até preocupar; é impossível não ficar surpreendido (é o país que temos…) e digo positivamente surpreendido e logo depois satisfeito, e de seguida (por que não, confessar?) orgulhoso, de ver a resposta da sociedade e do governo; impossível não dizer, dentro ou fora do país, que me surpreendeu, desde o início a resposta possível, com as soluções possíveis, que este ‘executivo’ tem procurado dar à questão covidiana, mau grado o ‘coviDizer’ na voz (escrita) de um jornalista cretino sobre a ‘militarização’ de Angola durante esta crise; seria óptimo que esse jornal brasileiro se informasse melhor sobre a polícia e até o exército que, sim, estão nas ruas, tem sido complicado, têm procurado fazer o seu trabalho junto de uma sociedade que, aqui sabemos, sofre de altos níveis de desigualdade social, baixos de civismo, o que só implica, sim, que toda e qualquer força tem que ser gerida em função da nossa realidade; mas é também verdade que há aqui (surgiu…) uma, digamos, ‘situação sociopolítica’ inédita, com conferências diárias, o mais das vezes com a presença da própria Ministra da Saúde, respondendo com muita paciência a todas questões (nem sempre pertinentes) dos nossos jornalistas, isto quando não está na televisão o governador da província ou outros elementos de uma comissão multissectorial; é quase impossível não ficar boquiaberto, com os números explicados ao pormenor, as estratégias apresentadas abertamente, e até as dificuldades sendo abordadas quer pelos que perguntam, quer pelos que respondem; é impossível não ter saudades de lugares de ver e de viajar, e lugares de abraçar, e de gestos que já nos foram simples, é impossível não ficar, por dentro, caladinho por, no fundo, ter a sorte (e o privilégio, e o lugar social, etc., etc.) de poder estar em quarentena ao contrário de milhões em Angola, Moçambique ou Brasil; é impossível não me lembrar, ou não saber ou não ler o que se passa politicamente no Brasil; e mesmo assim, é impossível não ver o grande esforço dos artistas (brasileiros) nos seus modos peculiares de resistir à bolsomía, digo, à pandemia; há dias uma criança (brasileira) escreveu a frase “oje é terça” e, ao ser alertada, reescreveu assim: “oje é sábado”; foi-me impossível não sorrir e pensar que a Beatriz tem razão: “oje”, durante algum tempo, é como cada um quiser.+

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Imagen de portada: Manos de una mujer en Sudáfrica. Fotografía de Piqsels. CC